16 de março de 2009

project storyboard IV

Jaime era o benjamim da casa Morais.
Quatro anos mais novo que Júlia, nasceu depois dos pais terem perdido a esperança de vir a ter outro filho, e foi tão bem recebido quanto qualquer criança o pode ser.
A avó, catolicíssima, entregou-se ainda mais ao seu fervor religioso depois do nascimento do neto varão. Acreditava que a criança uma atenção particular de Jesus à sua pessoa, em reconhecimento da sua irrepreensível profissão de fé e, como tal, redobrou-a.
Apesar dos esforços de toda a família para incluir Júlia na adoração do pequeno bácoro, esta não conseguia evitar um certo ciúme relativamente ao irmão mais novo, o que resultou em diversas travessuras e palmadas no traseiro nos anos que se seguiram.
Uma das partidas com que Júlia atormentava o pobre rapaz era contando-lhe histórias sobre as invulgares circunstâncias do seu nascimento. Jurava-lhe a pés juntos que tinha sido comprado a uma família de ciganos que por acaso passaram na Vila, com o intuito de agradar à avó que, como todos sabiam, queria um netinho para mostrar às vizinhas beatas. Todo o guião girava à volta do facto de Júlia ser, à semelhança dos pais, uma garota bastante franzina, de tez pálida, enquanto Jaime, mais moreno, tinha constituição forte e olhos e cabelos negríssimos.
Ao ouvir estas histórias, o pobre Jaime corria para colo da mãe, lavado em lágrimas e, por muito que esta lhe prometesse que os relatos não passavam de travessuras da irmã, a dúvida instalou-se na mente do rapaz, que com seis anos começava a aperceber-se do seu aspecto físico, e de como este diferia, de facto, do dos restantes membros da família.
Eventualmente, após muitas sovadas, Júlia parou de contar esta história, que com o passar dos anos caiu no esquecimento de todos, menos de Jaime.
Anos mais tarde, o pai arranjou trabalho como motorista da Carris, e a família mudou-se para Lisboa, instalando-se numa casinha com quintal, para os lados de S. João.
Embora o novo salário permitisse aos Morais uma vida um pouco mais cómoda, as crianças estavam inconsoláveis por deixar os amigos da escola, e durante algum tempo manifestaram o seu descontentamento com más notas, birras e travessuras diversas.
Para aliviar a tensão, o pai resolveu-se a levá-los à feira popular, em Entrecampos, notícia recebida pelos pequenos com excitação estridente.
Esta pequena excursão constituía um duro golpe para as frágeis finanças da família, já que, para além do preço de entrada, os feirantes, muitos deles ciganos, cobravam bilhetes para cada animação, o que significava difíceis escolhas para Júlia e Jaime.
Depois de amplo debate e alguns amuos, chegaram a uma situação de compromisso: Jaime acedia em andar na Montanha Russa, se Júlia o acompanhasse na Casa dos Mistérios.
Salvo o enjoo decorrente da escolha da rapariga, a noite prosseguiu sem mais incidentes, e pelas 23h00 já toda a família estava na cama.
Exaustos por um serão de emoções fortes, os irmãos não tardaram a adormecer. A brisa suave que corria pelo quarto, cortesia da janela entreaberta, acariciava os cabelos das crianças, e impregnava os seus sonhos de cheiros familiares e adocicados, embalando os ouvidos com o som discreto de passinhos rítmicos, vindos da rua.
Na manhã seguinte, a cama de Jaime estava vazia.

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